(…)
E eu, mínimo ser,
ébrio do grande vazio
constelado,
à semelhança, à imagem
do mistério,
me senti parte pura
do abismo,
rodei com as estrelas,
meu coração se desatou no vento
Fragmentos de A poesia, do livro Memorial de Isla Negra
Neftalí Ricardo Reyes Basoalto não parece nome de poeta. Assim como não favorece o lirismo uma carreira regrada e burocrática como a diplomacia. Menos ainda a crueza de um período em meio à guerra. No entanto, como para tantos poetas, também no caso do chileno Pablo Neruda, a regra e o óbvio não valem. Em contextos muitas vezes insólitos, sua poesia, assim como o amor – tema a que tantas vezes recorreu -, surgia para representar a vontade outrora perdida de dedicar-se a todas as coisas: à espécie humana, à natureza e à própria ambição poética de desvendar o grande mistério do universo e as (im)possibilidades do homem.
Em julho de 1904, no vilarejo de Parral, nascia o futuro poeta “entre vinhedos e ventanias”, como descreveu Paulo Mendes Campos em crônica literária incluída na coletânea Artigo indefinido. Quando completou apenas um mês de idade, sua mãe morreu de tuberculose e, com o pai, mudou-se para Temuco, no sul do Chile, onde manifestou a precoce vocação para o lirismo, aos 14 anos. Nessa época, conheceu a escritora Gabriela Mistral, responsável por despertar seu interesse pela literatura russa, e, inspirado no poeta tcheco Jan Neruda, adotou o pseudônimo Pablo Neruda, que o consagrou, inclusive tornando-se seu nome legal.
Neruda estreou em 1923 com o livro Crepusculário. Em suas reflexões acerca da própria obra, ele revela ter escrito “febril e loucamente” os poemas que considerava profundamente seus. “Afastando-me do tema amoroso e chegando a uma abstração, escrevi o primeiro desses poemas, que dá título ao livro, em uma noite extraordinariamente quieta, em Temuco, no verão (…). Escrevi de maneira delirante aquele poema, chegando talvez, como em um dos poucos momentos de minha vida, a sentir-me totalmente possuído por uma espécie de embriaguez cósmica. Creio ter alcançado um de meus primeiros propósitos.”
Quando publicou Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, em 1924, seu livro mais celebrado pelos amantes, o autor já vivia na capital Santiago e estudava para se tornar professor de francês. Nesse período, as relações alimentadas por conta da poesia levaram o jovem de 23 anos à carreira diplomática. Paralelamente a esse trajeto e denominando a sua nova concepção poética de “poesia impura”, começou a fazer incursões no surrealismo, fase experimental que produziu uma de suas maiores obras, Residencia en la tierra (1933), definida como intuitiva e visionária.
Como diplomata, Neruda passou por vários postos consulares na Ásia e na Europa e estava em Madri quando começou a Guerra Civil Espanhola. Com a derrota dos republicanos e a morte do amigo e colega de vocação García Lorca, o poeta passou a dedicar-se aos temas políticos e sociais. “Nasce um novo Neruda, menos empapado da chuva metafísica, inundado de marxismo”, escreveu Paulo Mendes Campos. De volta ao Chile, Neruda assumiu ação a favor dos refugiados espanhóis e tornou-se senador. Depois de três anos, teve o mandato cassado por manifestar-se contra o governo e, quando o Partido Comunista foi declarado ilegal, fugiu em exílio pelos Andes. Foi nesse período que escreveu os poemas engajados de Canto geral e declarou: “Toda criação que não esteja a serviço da liberdade nestes dias é uma traição”. Em um final que não poderia ser mais eloquente, o poeta morreu aos 69 anos, vítima de câncer, semanas após a morte do amigo Salvador Allende, deposto em 1973 pelo golpe militar comandado por Pinochet, que se prolongaria por quase duas décadas no Chile.
Desde o sensorial Crepusculário, passando por Residencia en la tierra, marcado pela angústia e pela desintegração, até chegar em Odes elementares, Memorial de Isla Negra e Confesso que vivi, que juntos compõem um percurso de reconciliação com a condição humana e com a memória, a entrega progressiva do autor à poesia é evidente. O peruano Mario Vargas Llosa afirmou que a poesia de Neruda começou como prazer proibido e se converteu em devoção. Neruda tratou de desatar os nós da vida sem a pretensão de chegar a um juízo absoluto, em um exercício de humildade poética que, no fim das contas, o levou – como todo poeta genuíno – a descobrir verdades plenas.
Matéria feita pela ML Jornalismo para a Revista Platero nº 18/abril, publicação da Livraria Martins Fontes http://www.revistaplatero.com.br