
Costa Pinheiro, Fernando Pessoa – Heterónimo, 1978, óleo sobre tela
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente (…)
(do poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa)
É impossível falar de poesia sem lembrar Fernando Pessoa. “O notável poeta português foi ao mesmo tempo um filósofo, pensando sempre as grandes questões, as contradições e os impasses do nosso tempo, minando as falsas verdades e desdenhando as possibilidades de uma verdade absoluta”, afirma o escritor e crítico literário Carlos Felipe Moisés, autor de vários livros, entre os quais Noite nula (poesia) e Histórias mutiladas, além de outros sobre a obra de Pessoa, como Roteiro de leitura: Mensagem de Fernando Pessoa, Fernando Pessoa: almoxarifado de mitos e Conversa com Fernando Pessoa.
O fascínio que o poeta exerce até hoje, quase 80 anos depois da sua morte, começa pela sua heterogeneidade. “Com uma linguagem marcada pela ironia, o gosto do paradoxo, a notável precisão vocabular, o poder de síntese e a extraordinária capacidade de imitar ‘estilos’, do mais tradicional ao mais ousado, Pessoa sempre jogou ludicamente com as possibilidades da escrita”, destaca Carlos Felipe. “Ele é atualíssimo porque enxergou tão fundo as pulsações latentes no seu tempo que foi capaz de antever a complexidade cultural que ainda hoje vigora e que só hoje nós conseguimos enxergar com alguma clareza, graças em parte à sua poesia”.
Com sua linguagem, o poeta consegue tocar ao mesmo tempo o homem comum e aquele muito bem preparado e informado, pois sua visão de mundo lida efetivamente com a realidade que cerca a todos nós. O romancista português Vergílio Ferreira diz: “Não há quem não se sinta mais inteligente do que é ao ler Fernando Pessoa”. Carlos Felipe complementa: “Pessoa instiga, excita a inteligência do leitor, mas aquela forma de inteligência que é indissociável da sensibilidade, das emoções, da intuição”.
Segundo o crítico, a criação dos heterônimos – diferentes nomes que o poeta utiliza como autores de sua obra – foi uma grande sacada: ninguém é igual a si mesmo o tempo todo, em todo lugar; as pessoas imaginam ser diferentes do que realmente são. “Os heterônimos nascem daí, cada um deles é um modo diferente de ser, de sentir, de se expressar, e no conjunto eles representam a negação da possibilidade de termos uma personalidade única, indivisível. Os vários heterônimos criados por Pessoa têm, cada qual, o seu perfil próprio: Alberto Caeiro é o homem do campo, simples, aparentemente ingênuo mas extremamente sagaz na sua falsa simplicidade; Ricardo Reis é um sujeito formal, tradicionalista, conservador, mas profundamente revolucionário com sua proposta de volta ao paganismo; Álvaro de Campos é rebelde, inconformista, nervoso, inquieto, apaixonado pela tecnologia do mundo moderno, naufragado em dúvidas e incertezas; Pessoa ele-mesmo (na verdade, só mais um heterônimo), é tímido, introvertido, sentimental e ao mesmo tempo racional e intelectualizado, esforçando-se por apreender o significado de todas as coisas”.
A vida do poeta exerceu uma grande influência em sua obra, desde a perda do pai aos quatro anos, a mudança da cidade natal, Lisboa, para Durban, na África do Sul, onde viveu dos 7 aos 17 anos e onde recebeu a educação britânica que o marcou por toda a vida. Carlos Felipe ressalta que isso lhe deu “certa consciência de ‘despaisado’, de expatriado ou mesmo apátrida, essencial para que ele encarasse o mundo do lado de fora, mas paradoxalmente sintonizado com o lado de dentro”.
Autor de uma infinidade de poemas, Fernando Pessoa publicou em vida apenas um livro assinado por ele: Mensagem. Deixou outros dois mais ou menos organizados: O guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro, e Livro do desassossego, do semi-heterônimo Bernardo Soares (sobre semi-heterônimo, Pessoa explica: não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade), além de uma enorme quantidade de inéditos. “Esses três títulos merecem destaque”, enfatiza Carlos Felipe, “mas a obra toda é de excepcional qualidade, ainda que ele não a tenha organizado na forma de livros definitivos: as odes de Ricardo Reis, a lírica atribuída a Fernando Pessoa, os poemas de Álvaro de Campos, os poemas ingleses, além da variada prosa ficcional e ensaística”.
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Matéria da ML Jornalismo para a Livraria Martins Fontes