“Almoço alegre e descontraído, todos, indiscriminadamente, amigos e inimigos, alguns ferrenhos adversários políticos, riam, esquecidos das desavenças. Ao passar por Jorge, seu xará Jorge Calmon lhe disse ao ouvido: Só mesmo você, seu Jorge Amado, seria capaz de realizar tal milagre”. (De A Casa do Rio Vermelho)
Ela tinha uma paixão, a paixão se chamava Jorge Amado e, em nome dela (ou dele) Zélia Gattai escreveu exaltadamente – isso, após completar 63 anos. Tudo o que a ela se relaciona leva a marca do inusitado. Zélia tardou, mas acabou por se revelar grande contadora de histórias no último terço de sua vida, personagem dedicada a reconstruir os momentos de uma relação amorosa de mais de 50 anos. E, como uma história puxa outra, permitindo recriar lugares, experiências e um mundo de pessoas, conquistou espaço significativo entre os memorialistas do País.
Anarquistas graças a Deus, de 1979, é o livro com o qual se apresenta. E ela se introduz do modo que lhe é característico, relembrando fatos marcantes do seu cotidiano, com um jeito intimista, como se estivesse em meio a uma conversa. O cenário é a São Paulo do início do século passado, repleta de imigrantes e de ideias políticas alheias às em evidência no Brasil da época, pretexto para Zélia recordar histórias da própria família – seu pai, Ernesto Gattai, ansiava implantar uma comunidade anarquista no Brasil e chegou a ser preso durante o Estado Novo. A filha? Só poderia dar no que deu, mulher independente e afeita à política.
“Sem dúvida, Anarquistas graças a Deus tem força especial, mas às vezes fico com a impressão de que Zélia escreveu o tempo todo um único livro. Histórias contadas em um livro reaparecem em outro, as narrativas se entrecruzam. O curioso é que ela nunca pareceu interessada na noção de ‘obra’, Zélia via sua escrita como depoimento, confissão. Daí a sinceridade em seus relatos e o sentimento de intimidade que eles despertam no leitor.” A análise é do crítico literário e escritor José Castello, que fez a apresentação da obra de Zélia Gattai quando do seu relançamento dois anos atrás. “As grandes qualidades de Zélia são a fluência, a simplicidade, gravitando não em torno de seu EU, mas sim da figura de Jorge Amado. Obra de doação, um longo ensaio de amor.” Ler para poder introduzir fez de Castello um especialista do trabalho dessa paulistana, nascida em 1916, mas “baiana por merecimento”. Castello nunca teve contato pessoal com Zélia, apesar de mostrar um entendimento visceral sobre quem fez da vida um grande romance.
Aos 20 anos, Zélia se casou com Aldo Veiga, intelectual e militante comunista, com quem teve um filho, Luis Carlos, em 1942. Em 1946, porém, já estava envolvida com Jorge Amado, que havia conhecido no movimento de anistia dos presos políticos. O casal foi morar no Rio de Janeiro, onde nasceu o filho João Jorge (1947). Mas o Partido Comunista foi declarado ilegal – e o baiano Amado viu-se obrigado a se exilar junto com a família.
O segundo livro, Um chapéu para viagem, que Zélia publicou apenas em 1982, narra os primeiros encontros do par apaixonado, as lembranças da família Amado a partir do relato de Lalu, mãe de Jorge, e os primeiros anos no estrangeiro. Porque, depois de Paris, a família viveu na Checoslováquia (onde nasceu a filha Paloma, em 1951). De volta ao Brasil, em 1952, eles foram primeiro morar no Rio, mudando-se para Salvador em 1963, exatamente para a casa que se tornaria espécie de emblema do estilo de vida do casal, no bairro do Rio Vermelho.
Ali, Zélia concluiu o trabalho fotográfico que fizera do marido nos anos de exílio, foto-biografia que intitulou Reportagem incompleta, publicada em 1987. A própria casa – e o vaivém de personalidades, muitas delas inimigas políticas, mas capazes de engrandecer o dia a dia de Gattai e Amado debaixo daquele teto – foi tema de um dos livros afamados da escritora, A casa do Rio Vermelho (1999), coletânea dos melhores momentos vividos naquele endereço ao longo de 21 anos. Narrativa ampliada em Memorial do amor (2004), de conteúdo alimentado por uma ausência doída: Jorge Amado havia morrido em 2001. “Zélia trabalha com recordações pessoais. Não cita autores, não se ‘prepara’: entrega-se, de mãos limpas, às palavras. É uma grande artesã da memória, que devemos ver não só como recordação do passado, mas sim como reconstrução desse passado”, afirma Castello.
Eleita para a Academia Brasileira de Letras em 2001, a escritora ocupou a mesma cadeira que havia pertencido ao marido e, antes dele, a Machado de Assis. Também se aventurou na literatura infantil e no romance (Pipistrelo das mil cores e Crônica de uma namorada). “Continuo achando graça nas coisas, gostando cada vez mais das pessoas, curiosa sobre tudo, imune ao vinagre, às amarguras e aos rancores”, ela disse um dia, sem afetação, lembra José Castello. Morreu em Salvador, em 17 de maio de 2008.
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Matéria da seção Resgate Literário da Revista Platero nº 21/julho www.revistaplatero.com.br.
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