…quando cheguei perto me veio uma coisa, como se fosse um veneno, e eu dei um berro, arranquei a camisa molhada do meu corpo de um só golpe, rasguei, os botões voaram, num ímpeto baixei a calça e a cueca, sacudi desembestado a perna para que a calça se desvencilhasse de mim, e agora eu vestiria a roupa seca que Kurt me dava, e depois eu iria para a cama, me sossegar, dormir quem sabe, sonhar. (trecho de O quieto animal da esquina)
Seus livros têm uma cadência musical. À medida que os lemos, vamos sentindo o ritmo, às vezes transbordante, outras vezes mais refreado. Não é por acaso. João Gilberto Noll tem estreita ligação com a música. “Quando criança, estava me encaminhando para ser cantor lírico, cantava a Ave Maria, de Schubert, em casamentos e festas”, lembra. “Até a adolescência, quando minha timidez começou a tornar dificultoso para mim o contato direto com o público. Mas eu sabia que meu universo era esse universo artístico, era por aí que eu queria seguir. Assim, fui me voltando sorrateiramente para a literatura, que é uma atividade mais solitária. Até hoje, tenho uma maneira de escrever que se assemelha à criação musical. Sou levado pelos movimentos sintáticos da frase, e isso é importante para mim, o andamento em que estou me comunicando, me expressando literariamente”.
A primeira obra foi publicada quando ele tinha 34 anos. O cego e a dançarina (1980), de contos, lhe valeu o primeiro dos cinco prêmios Jabuti que recebeu. Depois, já saíram mais 15 livros, todos muito bem recebidos pela crítica. Entre eles, os premiados romances Harmada (1993), A céu aberto (1996) e Lorde (2004), os contos Mínimos múltiplos comuns (2003) e o infantojuvenil Sou eu (2009), também indicado para o Jabuti. Sem falar em Anjo das ondas (2010), voltado para o público jovem, e Hotel Atlântico (1989), um dos que foram transformados em filme, num belíssimo trabalho de Suzana Amaral. “Ela foi soberba na adaptação do livro para o cinema, num ritmo que segue muito bem a história”, observa Noll.
Gaúcho, o escritor viveu alguns anos no Rio de Janeiro e em São Paulo antes de se estabelecer definitivamente na sua Porto Alegre. Ele afirma que gosta de escrever ouvindo música clássica, principalmente Bach, e música barroca, “que me leva ao sublime que todo artista quer atingir”, ou então numa praia do litoral gaúcho, no inverno, quando o movimento de pessoas é menor. “Quando estou trabalhando, sou tangido pelo inconsciente, não penso em nada além do livro, fico tomado pelo aspecto rítmico da linguagem. Escrevo por impulso, é uma atividade compulsiva para mim”.
“Claro que, no segundo momento, vou trabalhar o texto até as últimas consequências, aí já é um lado mais racional. Sou muito mais levado pela linguagem do que pelo conteúdo, é como na música, é mais sensitivo. Escrevo sobre o drama humano, mas para esse drama aflorar, preciso ser tangido pela linguagem. Às vezes, as frases muito longas ocupam mais de uma página porque a respiração do texto é um desvario, é ofegante, não pode parar, por o ponto final antes da hora. Outras vezes, é muito seco, uma frase é apenas uma palavra. Depende do clima da história e isso é somatizado na linguagem”.
Os livros de Noll têm características próprias, segundo ele, com algumas obsessões. “Certas coisas não largo nunca, como a solidão, a necessidade de meus personagens principais estarem em constante deslocamento, com uma identidade sempre em processo, nunca acabada, nunca definida. São personagens geralmente sem nome e sem feições. Por outro lado, a infância está sempre presente, com uma certa nostalgia desse período, mas às vezes também com horror. Sou preocupado com a integridade que poderíamos ter antes de assumir a máscara adulta, máscara que somente no amor ou na paixão talvez possa vir a se dissolver um pouco”.
Indagado sobre os autores que mais admira e que exerceram alguma influência na sua literatura, o escritor cita de imediato Clarice Lispector. “A paixão segundo G. H. marcou profundamente minha adolescência. Como é que pode um livro praticamente inteiro se passar entre uma mulher sozinha em casa e uma barata? É um livro capital na literatura brasileira. Meu gozo pela palavra é a poesia ou uma prosa mais poética, como a de Clarice. Outro gigante na palavra artística brasileira é Carlos Drummond de Andrade“.
Para Noll, literatura prazerosa é aquela que permite embarcar na aventura humana, é não saber onde vai dar o texto, é estar completamente entregue, em abandono diante de um trabalho literário que só assim pode ser consistente e, ao mesmo tempo, um belo texto. “O escritor tem de ser tremendamente fiel a si mesmo. Como um cão é fiel a seu dono, é preciso ser fiel à sua verdade interna, à sua maneira de captar as coisas. Com isso, é possível enriquecer a sociedade humana com uma percepção radicalmente pessoal”.
Matéria feita pela ML Jornalismo para a Revista Platero nº 18/abril, publicação da Livraria Martins Fontes http://www.revistaplatero.com.br